Norbert Elias,  O Processo Civilizacional, Lisboa, D.Quixote, 1989-1990 (2 vols).

             Norbert Elias nasce a 22 de Junho de 1897, em Breslau (na altura situada em território alemão, hoje polaco). Filho único de um casal de judeus, ambos vítimas dos campos de Auschwitz, Elias viu-se também afectado pelo anti-semitismo, ao ter que passar grande parte da sua vida no exílio. Integrou o exército da frente ocidental durante a Iª Grande Guerra, só iniciando os seus estudos superiores após 1918. A sua formação académica conta com estudos de Medicina, Psicologia, Filosofia e Sociologia, nas cidades de Breslau, Freiburg e Heidelberg. Durante os anos ’30, trabalha no Instituto de Investigações Sociológicas de Frankfurt e é assistente de Karl Mannheim naquela Universidade. A permanência nos círculos sociológicos destas duas últimas cidades alemãs torna-o permeável às teorias weberianas (a sua teoria da interiorização e automatização das normas impostas do exterior aproxima-se bastante da exposição de Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo) e marxistas (sobretudo quando Elias apresenta a evolução política como uma luta contínua pelos monopólios sociais) de evolução da sociedade, embora Elias assuma uma postura revisionista tendente a flexibilizar tais teorias. Conhece, nesses anos, figuras como Karl Jaspers, Karl Löwith e Talcott Parsons, sociólogo americano que deu origem à linha funcionalista de interpretação weberiana, criticada mais tarde por Elias. A ascensão ao poder dos nacional-socialistas na Alemanha, em 1933, faz com que seja forçado ao exílio, primeiro na Suíça e em Paris e depois definitivamente em Inglaterra, onde trabalha alguns anos na sala de leitura do British Museum e escreve a sua principal obra: O Processo Civilizacional. Permanece na Grã-Bretanha até à década de 1970 (altura em que o seu Processo Civilizacional é finalmente “descoberto” pelo mundo académico e em que Elias é requisitado por várias Universidades e Institutos europeus), investigando e ensinando em Cambridge e no departamento de Sociologia de Leicester (desde 1954). Durante os anos ’80 faz parte do Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Bielfeld e vive em Amesterdão, onde acaba por falecer em 1990. A sua formação escolar multifacetada e a sua passagem por Universidades de vários países e cidades, fazem de Norbert Elias um estudioso consciente da variedade das organizações sociais e da sua mutabilidade e impermanência, desejoso de uma maior interacção das várias áreas do saber humano e atento à actualidade, algo que se reflecte nas suas obras, particularmente n’A Sociedade de Corte e n’O Processo Civilizacional, obra, onde, para além de se fundirem diversas áreas das ciências sociais (com destaque para a Sociologia, a Psicologia e a História), se tenta esboçar uma teoria do processo de evolução da sociedade aplicável à actualidade europeia da década de 1930.

            Über den Prozess der Zivilisation é o título original desta obra (que, traduzido à letra, significa Sobre o Processo da Civilização). Publicada pela primeira vez em 1939 e uma segunda vez em 1969, só é traduzida do alemão para o francês em 1973. Composta por Elias como um todo é, na tradução francesa, dividida em dois volumes intitulados La Civilisation des Moeurs e La Dynamique de l’Occident, publicados em separado, o primeiro em 1973 e o segundo em 1975. A tradução portuguesa, sobre a qual nos debruçamos, editada pelas Publicações D. Quixote, manteve a divisão francesa em dois volumes, mas juntou ambos sob o título de O Processo Civilizacional, dando ao primeiro volume (saído em 1989) o nome de Transformações do Comportamento das Camadas Superiores Seculares do Ocidente e ao segundo, de 1990, a designação de Transformações da Sociedade. Esboço de uma Teoria da Civilização. As Transformações do Comportamento das Camadas Superiores Seculares do Ocidente dividem-se, por sua vez, em dois grandes pontos: o primeiro intitulado “Da Sociogénese dos Conceitos de Civilização e Cultura” e o segundo “Civilização como Transformação Específica do Comportamento Humano”, onde se analisa a psicogénese do processo civilizacional. O segundo volume comporta um terceiro ponto: “Da Sociogénese da Civilização Ocidental”, onde se trata do processo de sociogénese do Estado como entidade modeladora dos afectos e atitudes individuais e, por último, a “Sinopse”, onde se apresentam as conclusões finais da Teoria da Civilização que Elias pretende esboçar com este estudo global.

            A preocupação básica e central deste estudo de Elias é descrever o processo de civilização do ocidente europeu, isto é, demonstrar a evolução das relações do homem ocidental com o seu próprio corpo, com as suas necessidades e instintos fisiológicos e emocionais e o modo como esta evolução se reflectiu nas relações do indivíduo com os outros e foi condicionada pela evolução histórica da sociedade. O que Elias acaba por fazer é uma introdução a uma possível história dos usos sociais e políticos do corpo e da mente humanos:o modo como ao longo da obra a construção de um Estado centralizado se conjuga com o aumento de interdições e recomendações corporais, revela a existência de mecanismos de controlo individual activados pelo colectivo. Norbert Elias pretende alertar para o facto de não serem só os factores materiais e intelectuais a sofrerem alterações históricas, pois estas também actuam sobre o modo de ser e de agir do indivíduo. O universo mental também tem história.

            Na “Sociogénese dos Conceitos de Civilização e Cultura”, a grande preocupação de Norbert Elias é definir o conceito de “Civilização”, preocupação lógica já que é ele o tema central da sua obra. No entanto, depara-se, logo de início, com a necessidade de efectuar algumas distinções preliminares entre os vários níveis de significado existentes neste conceito: se a definição geral de “Civilização” exprime a auto-consciência do Ocidente por oposição aos chamados “bárbaros” ou “incivilizados” (oposição que já estava fortemente presente na consciência grega), pois «Condensa tudo aquilo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos crê suplantar as sociedades anteriores ou as sociedades contemporâneas “mais Primitivas”» (vol. I, p. 59), o mesmo não acontece com os modelos específicos de evolução social dos diferentes países ocidentais. No caso alemão, torna-se necessário proceder a uma sub-divisão dentro do conceito “Civilização”, surgindo, assim, o binómio “Zivilisation” e “Kultur”. A escolha da França e da Alemanha como paradigmas da sociogénese destes dois conceitos é fundamental para esclarecer a sua evolução paralela e a sua consolidação como expressões definidoras da auto-consciência de dois países por oposição um ao outro, mas também para ilustrar como a cultura das elites políticas, isto é, como a cultura da corte, forma, ao longo da Idade Moderna, um todo homogéneo, que se sobrepõe às especificidades de cada reino ou principado e que acaba por se impôr como modelo de “civilização” a toda a sociedade. De facto, ao escolher os casos francês e alemão, deixando outros importantes centros europeus como a Inglaterra, Elias opta pelos dois modelos mais distintos de organização e dinâmica social, que darão origem aos pólos irradiadores dos dois grandes modelos gerais de civilização existentes na Europa. Por estes exemplos fica provado que a diferentes modos de organização e de evolução económica, social e política correspondem diferentes sensibilidades e percursos mentais. Este capítulo dedicado à especificidade alemã relaciona-se intimamente com o momento histórico que se vivia na época: a exacerbação do anti-semitismo tentou ser justificada por vários sociólogos a partir de alguma particularidade civilizacional deste país.

            A marginalidade cultural e política a que a Alemanha se encontra votada nos séculos XVII e XVIII em relação à sociedade cortesã da França e da Inglaterra, resulta numa imitação sem criatividade da produção cultural e letrada daqueles grandes centros e dos moldes absolutistas e cerimoniais de organização da corte. Com este tipo de vivência cortesã não se identificava a classe média letrada afastada da corte imperial, conotando-a com o artificiosismo e futilidade que ressaltava da corte francesa, opondo-lhe um outro modelo de vivência cultural, totalmente baseado no aspecto interior do indivíduo e na sua formação moral e intelectual e, criando assim um novo conceito: a “Kultur”. Primeiramente utilizado no âmbito desta classe média insatisfeita, ganhou relevância com a ascensão cultural do Romantismo e com o processo de unificação política deste país, passando a designar a auto-consciência alemã por oposição ao conceito “Zivilisation”, identificado com as fúteis importações culturais francesas. Temos, então, a sociogénese dos conceitos “civilização” e “cultura” na Alemanha. A sociogénese do conceito de auto-consciência nacional francês, “Civilisation”, ocorre também de acordo com os moldes específicos de evolução social deste país. Aqui, a burguesia cedo foi incorporada nos meios cortesãos, e cedo adoptou os modelos de vivência deste espaço de poder, havendo uma grande interpenetração de valores e comportamentos, tanto que no século XVIII os modos burgueses e aristocráticos franceses já não diferem muito. Incorporada a burguesia no conceito de “Civilisation”, este rapidamente passa de um termo de auto-definição cortesã para um termo de auto-definição nacional. No fundo, para Elias, a diferença sociogenética destes dois conceitos entre a Alemanha e a França é simples: na Alemanha, a sociedade de corte não se conseguiu generalizar à restante sociedade, daí que se tenha imposto como conceito nacional uma palavra que exprime oposição à vida cortesã, ao passo que em França, este processo de assimilação dos moldes cortesãos pela burguesia e restantes camadas sociais, foi bem sucedido, resultando a identificação nacional francesa no conceito que designa precisamente as relações na corte.

            Estabelecidas as diferenças entre a evolução social de dois conceitos em duas nações com percursos tão diferentes, Elias volta-se, ao longo da segunda (e também da terceira) parte para a evolução do modelo que vingou na Europa ocidental sob a esfera cultural francesa e dedica-se à evolução dos comportamentos nos territórios hoje correspondentes à França e à Inglaterra, os casos mais adequados ao tipo de esquema evolutivo que defende. Tal monopólio por parte do caso francês na obra de Elias (algo que transparece não só no estudo em análise, mas também na obra A Sociedade de Corte) acaba por tornar as análises aí apresentadas demasiado específicas e não aplicáveis a outros países da Europa, sobretudo ao caso alemão, tardiamente unificado como Estado e não sob o signo da generalização dos comportamentos cortesãos. André Burguière corrobora esta ideia, ao referir-se nestes termos às teorias de Civilização de Elias: «…en délaissant l’histoire de France pour s’appliquer à la société en général, les thèses de l’octogénaire de Bielefeld perdent du sens au lieu d’en gagner.» (Dictionnaire des Sciences Historiques, PUF, 1986, p. 242)

            “Civilização como Transformação Específica do Comportamento Humano” é o título do segundo ponto do Processo Civilizacional, que se equaciona com a exposição feita na terceira parte, intitulada “Da sociogénese da Civilização Ocidental”. Se na segunda parte, Norbert Elias faz uma síntese do que foi, para ele, todo o processo de assimilação de novos comportamentos por parte dos europeus ocidentais (desde a Idade Média até ao final da Época Moderna), divide o processo civilizacional em etapas de evolução e indica as características de cada uma delas e o sentido global que tomam, na terceira parte propõe-se justificar a evolução dos comportamentos individuais através da evolução social, económica e política europeia, contemplando o tipo de organização correspondente ao feudalismo, à formação dos primeiros estados ou reinos e à ascensão do absolutismo, já que, para ele, a resposta para as transformações emocionais dos indivíduos reside no tipo de enquadramento social a que estão sujeitos. Estas duas partes formam o corpo da obra, resultando da fusão de ambas o “Esboço de uma Teoria da Civilização”. São os pontos mais importantes e sistematizados, que deixam transparecer um trabalho directo com fontes escritas e iconográficas e uma integração bem sucedida por parte do autor no ambiente de produção intelectual dos textos que apresenta. Como tal, merecem ser aqui resumidos e articulados em conjunto, não só para facilitar a compreensão da obra como para ordenar alguma da dispersão e redundância em que Elias por vezes cai.

             Elias apresenta, assim, um esquema de evolução do comportamento humano baseado em três conceitos diferentes, correspondendo cada um a uma etapa dos moldes de conduta ideal preconizados pelas classes dirigentes e a uma fase da sociogénese da civilização ocidental.

            O primeiro, a courtoisie, designa o padrão feudal e, embora as maneiras cavaleirescas medievais nunca tenham sido tão estritas e repressoras dos instintos naturais como as maneiras impostas em épocas posteriores, Elias escolhe esta época histórica como ponto de partida para o seu estudo (embora fazendo a importante ressalva para o facto de o processo civilizacional não ter um grau zero de iniciação, pois sempre existiu e é interminável), já que residem aí muitas das linhas-chave da evolução civilizacional europeia. O termo courtoisie expressa o sentimento de auto-distinção da camada superior secular, da elite pertencente à corte e desejosa de se fazer distinguir das restantes camadas sociais através de um comportamento específico; já está também aí presente a centralidade social do comportamento à mesa e a homogeneidade de comportamentos entre todas as camadas cortesãs, independentemente da sua localização geográfica ou nacionalidade: todos os tratados leigos medievais de que dá exemplos (Elias escolhe propositadamente três casos de diferentes proveniências) – o Roman de la Rose, The Book of Nurture ou as Tichzuchten alemãs – revelam uma mesma corrente de tradição comportamental recomendada à camada social superior. A sociogénese do comportamento courtois corresponde então à sociogénese das grandes cortes feudais europeias, locais onde se começam a formar os primeiros sistemas de monopólios (Elias distingue três tipos de monopólios essenciais à formação de um poder centralizado: o monopólio militar e da violência física, o monopólio fiscal e o monopólio económico) e onde já se identificam núcleos consideráveis de poder centralizado. No território francês esta fase civilizacional corresponde aos séculos XI-XIII, quando o detentor da coroa real possui apenas um poder simbólico sobre os restantes senhores feudais, pois as suas posses e potencialidades económicas e militares são iguais às dos demais. Só no século XIV, após o período de grande conturbação marcado pela Guerra dos Cem Anos, é que a coroa francesa se assume como a grande defensora do território continental, podendo reclamar para si o processo de monopolização. A crescente centralização do poder nas mãos de um cada vez menor número de grandes senhores e a consequente eliminação dos pequenos adversários, significa a perda de autonomia por parte dos guerreiros, que se começam a aglomerar em torno das, também cada vez maiores, cortes, implicando isto alterações comportamentais, como uma maior contenção dos actos.

            É sob estas condições que o comportamento courtois evolui e se complexifica. É a passagem para o segundo tipo de sociabilidade europeia que Elias designa como civilité, termo inaugurado no segundo quartel do século XVI com o De Civilitate Morum Puerilium de Erasmo, tratado respeitante ao externum corporis decorum (à compostura exterior do corpo), mas que, sendo um produto humanista, dá uma extrema importância aos valores morais e à formação cultural das crianças, desvalorizando um pouco as distinções sociais sempre patentes neste tipo de literatura. Ainda com alguns resquícios do padrão courtois, as práticas da civilité, generalizadas na época de transição que foi a centúria quinhentista, contêm bastantes elementos de modernidade, sobretudo no modo como aconselham e exemplificam: não são tão marcadas pelo maniqueísmo (oposição irredutível entre o bom e o mau, entre o amigo e o inimigo, entre o prazer e o desprazer) medieval e são mais adaptadas ao indivíduo e à situação específica vivida por este (trazem consigo a marca de um temperamento individual), são fruto de uma observação empírica e de uma análise psicológica das situações, são mais subtis e, sobretudo, demonstram uma prática correctiva mais afável do que a medieval (a substituição da troça e das ofensas por conselhos é algo exemplificativo da pacificação social própria do “processo civilizacional”). Os homens começam sobretudo a regrar-se por aquilo que é ou não “conveniente”, por uma maior observação e imitação do comportamento alheio. Cresce a pressão mútua entre os membros da mesma sociedade e o autocontrolo social: algumas regras estão já interiorizadas, supondo isto outro tipo de bases comportamentais que os homens medievais não dispunham (é revelador o facto de os tratados medievais serem dirigidos a adultos e os posteriores se destinarem a crianças), e outras vão continuar a sê-lo, até o indivíduo atingir um grau de autocoacção que o dispense de repreensões externas. À civilité correspondem os séculos XVI-XVIII, séculos de burocratização do aparelho estatal, de aperfeiçoamento do controlo social por parte do poder central já instalado, séculos de protagonismo da corte régia francesa absolutista, de curialização da nobreza e de ascensão social da burguesia. É sobretudo ao longo do século XVII que os mecanismos cortesãos de controlo pulsional estão mais activos: não é por acaso que a centúria seiscentista é considerada o século da “diplomacia”, pois o refinamento das pulsões e as lutas pela ascensão ao poder social tomam aí a forma da astúcia, da dissimulação, da afabilidade calculista. Aumenta o grau de dependência dos nobres em relação ao monarca, mas as interrelações sociais sofrem transformações a outros níveis: a generalização da circulação monetária, o alargamento dos circuitos comerciais, a complexificação da vida económica, a maior diferenciação e especialização profissional, tornam os indivíduos de todas as camadas sociais mais interdependentes, o que generaliza os comportamentos cortesãos à restante sociedade, uniformizando-os.

            Assim, o modelo social da civilité é complexificado ao longo do século XVIII, dando lugar ao terceiro conceito de sociabilidade: o de civilization. A civilization surge num momento histórico de forte interpenetração entre os hábitos das classes superiores e das classes médias e de generalização dos modelos cortesãos de sociabilidade às restantes camadas sociais: é o final da etapa de evolução civilizacional das camadas superiores da sociedade. Protagonizada não só pela nobreza de corte, mas também pelas camadas burguesas em pleno assalto económico e político à primazia social, a civilization é a fase em que todos os novos comportamentos de elite se encontram fixados e todos os indivíduos da alta sociedade perfeitamente autocontrolados e polidos, passando-se então a uma fase de colonização comportamental da restante sociedade. Para Elias, o grau de “civilização” atingido pelas elites ocidentais no final do século XVIII, mantém-se sem alterações substanciais até à actualidade registando-se apenas a sua propagação às classes baixas.

            Todas as transformações civilizacionais apontadas por Norbert Elias são geradas pelo mesmo processo cíclico de desejo de distinção social através do refinamento contínuo das maneiras por parte dos cortesãos, seguido de imitação destes moldes pelas camadas da alta burguesia, cujo prestígio dependia não da riqueza monetária, mas da nobreza social e de generalização das práticas elegantes a toda a sociedade. A criação, imitação e generalização progressivas dos comportamentos cortesãos, no sentido de propagação centro (corte) – periferia (outros espaços sociais) dos “hábitos correctos”, faz-se numa direcção específica, a que Elias chama «descida do limiar de reactividade aversiva e de pudor» (Vol. I, p. 147) – correspondendo ao afastamento e dissimulação das funções corporais de cada indivíduo, à diminuição do contacto físico quotidiano e espontâneo com os outros, à crescente individualização e isolacionismo sociais, ao aumento do pudor, da auto-repressão dos instintos, ao recuo dos espaços lícitos à violência física (monopolizada pelo Estado ou regulamentada em forma de jogo) – e com base em critérios de pura hierarquia social e de lógica de poder, não racionais, não científicos, já que os argumentos de higiene e saúde surgem posteriormente (Elias só os detecta no decorrer do século XIX).

            Mas as alterações comportamentais processam-se a longo prazo, sendo a sua evolução perceptível e sistematizável pela análise de algumas fontes, como, por exemplo, a literatura normativa a que Elias recorre: «Revelam [os tratados de boas maneiras] exactamente aquilo que procuramos, ou seja, qual o padrão de costumes e comportamentos a que a sociedade tentou habituar o indivíduo em cada época dada. Esses poemas e esses tratados são, eles próprios, instrumentos directos de “condicionamento” e de “modelação”, de integração do indivíduo nos modos de comportamento exigidos pela estrutura e pela situação de uma determinada sociedade.» (Vol. I, p. 131). Contando com textos anónimos medievais (um do século XIII e outro do XV), com a Civilidade Pueril de Erasmo de Roterdão (1530), com o Galateo de Giovanni della Casa (tratado italiano de 1558, inspirado na Civilidade), com uma Civilité de Calviac (1560, também decalcada de Erasmo), com o Nouveau Traité de Civilité de Antoine de Courtin (1672), De la Science du Monde et des Connoissances Utiles à la Conduite de la Vie de François de Callières (1717), com duas edições das Règles de la Bienséance et de la Civilité Chrétienne de De La Salle (uma de 1729 e outra de 1774), com uma Civilité Honete pour les Enfants (1780) e com The Habits of Good Society (1859), entre outros exemplos, cujo âmbito cronológico percorre o século XIII ao século XIX, a análise é feita sob os vários prismas ligados ao comportamento e reacções humanas: o comportamento à mesa (moldes em que se processa o consumo de carne, uso da faca e do garfo); a modelação da linguagem; a atitude face às funções naturais; preceitos relativos ao assoar e ao cuspir; o comportamento no quarto; a evolução das relações entre o homem e a mulher (educação sexual, casamento, cortejamento); a evolução nas atitudes agressivas; as transformações sociais, profissionais, económicas ocorridas na vivência dos cavaleiros ao longo de todos estes séculos. Os textos têm a orientação comum de recomendar o melhor modo de comportamento em sociedade e espelham a evolução das recomendações e dos hábitos ao longo dos séculos que percorrem, a evolução do autocontrolo social, o recuo da violência explícita, o avanço de tabus, medos, repulsas e culpas, a implementação social do “anátema do silêncio”, ocupando a Civilidade Pueril de Erasmo sempre o lugar de viragem no tom e no teor destas recomendações. De facto, “com o seu tratado, Erasmo é, como se disse, precursor de um novo padrão de pudor e repugnância, que começa por formar-se, lentamente, entre a camada superior secular” (Vol. I, p. 177), padrão este que inicia os moldes de controlo afectivo-emocional actuais, mas que ainda se encontra em estado embrionário como fica provado pela naturalidade com que Erasmo nomeia directamente certas funções orgânicas e pelo que é ainda aceitável fazer perante outros. Nos hábitos alimentares aumentam as interdições ao uso livre da faca, objecto agressivo que se vê domesticado à medida que a pacificação social avança; em relação ao dormir, aumentam as restrições face ao contacto físico espontâneo com o companheiro de cama, introduz-se vestuário próprio que combate o hábito de dormir nu, acabando por se instaurar a prática das camas separadas. Todas estas normas são, em grande medida, reduzidas a escrito por Erasmo e coincidem no tempo: Elias nota que a peça de vestuário própria para dormir entra em uso na mesma cronologia (século XVI) do garfo e do lenço de assoar, revelando um aumento da sensibilidade dos indivíduos em relação a tudo o que se relacionava com o corpo. Todos estes exemplos são indicados por Elias para confirmação da sua tese, dando especial atenção, tal como o fazem os tratados de boas maneiras por ele estudados, à evolução do comportamento à mesa, local privilegiado de sociabilidade, de ostentação de riqueza e espelho do padrão das relações e hierarquias humanas e da estrutura afectivo-emocional de cada sociedade, sobretudo quando reportado aos espaços cortesãos de uma sociedade tão atenta ao cerimonial e à hierarquia como o foi a sociedade medieval e de Antigo Regime: «O comportamento à mesa não é, porém, algo isolável. (…) O seu padrão corresponde a uma estrutura social muito definida.» (Vol. I, p. 117).

            O interesse desta obra advém precisamente do modo como Elias se conseguiu aperceber da sofisticada teia de relações entre todos os níveis da vida humana (“Se, em vez de funções sociais relativamente independentes, surgem na sociedade cada vez mais funções dependentes – por exemplo, se a cavaleiros livres sucedem cavaleiros da corte e, por fim, cortesãos… – então altera-se necessariamente também a modelação dos afectos, a estrutura da vida pulsional e da vida cognitiva, em resumo, toda a constituição sociogenética e as atitudes sociais das pessoas”; Vol. II, p. 96) e de como conseguiu identificar e apresentar os seus pontos principais.

             Para Elias, o processo de evolução humana já esquematizado, embora não obedeça a um planeamento prévio e racional, dá-se de modo regrado (sob a orientação das interdependências sociais) e em direcção a um modelo comum: o indivíduo é levado a regular o seu comportamento de forma mais uniforme e mais estável, mais racional, menos guiada pelas paixões momentâneas, mais interiorizada. O paradigma escolhido para ilustrar o sentido da “civilização” europeia por Norbert Elias é a evolução que ele próprio designou como “Do Guerreiro ao Cortesão” (Vol. II, p. 208). Estes homens da corte são exemplos ideais de evolução pois vivem junto do centro de poder, estando assim expostos em primeiro grau às hierarquias e pressões sociais. São os barómetros da intensidade com que se processa ao longo dos séculos a monopolização do poder, os pioneiros na regulação do comportamento e na pacificação social. O cortesão da corte absolutista, totalmente dependente do monarca, mas ao mesmo tempo, a base social de todo o poderio deste último, é o efeito mais notório do aumento esmagador das interdependências sociais ocorrido nos séculos XVII e XVIII, que originará os comportamentos característicos da Civilization. A corte ocupa, aliás, um lugar central na reflexão de Elias: espaço absolutamente vital da Europa Moderna, age como o “laboratório” do padrão de cultura ocidental, como materialização do espaço em que o poder político condiciona as posturas e atitudes corporais e mentais do individual. A historiografia actual deve muito a este autor que, através da Sociologia, fez da corte um objecto de estudo histórico incontornável na análise da cultura europeia moderna. Elias é, ainda hoje, visto como o fundador das investigações cortesãs, sendo de citação quase obrigatória nas obras relacionadas com esta temática.

            A dificuldade de sistematizar o processo civilizacional, sentida pelo próprio autor, deriva das relações complexas e quase indestrinçáveis que os níveis da vivência humana mantém entre si («As estruturas afectivo-emocionais do homem são um todo… formam uma espécie de circuito fechado no homem, uma totalidade parcial na totalidade do organismo» - Vol. I, p. 226): o individual funde-se com o colectivo, o privado com o público, o exterior com o interior, a evolução social, política e económica da comunidade com a evolução psicológica do indivíduo, formando um conjunto que age global e simultaneamente, acumulando experiências e factos, num ciclo que se complexifica a cada dia e é comparável ao efeito “bola de neve”. Elias, imbuído de teorias sociológicas e biológicas de evolução das espécies vivas, vai ao ponto de comparar a ontogénese do indivíduo com a filogénese social, isto é, diz que os métodos de repressão a que uma criança vê sujeita a sua espontaneidade e as transformações que sofre até atingir a idade adulta são análogas às do homem medieval no seu processo de civilização até se tornar num homem do século XVIII.

            É decisivo o alerta que a obra deixa para a centralidade das transformações do psiquismo humano ao longo do processo civilizacional: «A transformação civilizadora – e, com ela, também a racionalização – não é algo que acontece numa esfera especial das “ideias” ou dos “conceitos”. O que ela envolve não são apenas transformações do “saber” ou das “ideologias”, ou seja, alterações dos conteúdos da consciência e, como maior razão, os hábitos de pensamento são apenas uma manifestação parcial, um sector. São transformações na configuração de todo o psiquismo, em todas as suas zonas, desde o comando mais consciente do eu até ao comando, inteiramente inconsciente, dos impulsos e das pulsões. E para apreender transformações desta espécie, o esquema de pensamento sugerido pelos conceitos de “superstrutura” ou “ideologia” já não é suficiente.» (Vol. II, p. 229) Para Elias, que recupera alguma teorização psicanalítica, o estudo histórico e sociológico não pode ignorar o inconsciente humano, onde se alojam os impulsos e os pudores sociais que explicam todo o comportamento de uma sociedade em determinada fase da sua existência: uma investigação que se limite à ideologia (superestrutura da mentalidade humana) é uma investigação limitada à partida. O que este sociólogo vem dar ao meio científico da época é um novo modo de olhar e de lidar com as regiões mais obscuras do humano, mostrando que até os instintos têm “história” e são permeáveis a todas as transformações humanas, estando por isso validados a participar nos estudos históricos sobre o Homem.

            O Processo Civilizacional é, não só o mais ambicioso projecto de trabalho de Norbert Elias, como também um marco na evolução das ciências sociológicas e históricas, pois traz importantes contributos e novidades (metodológicas e ao nível de informação), enriquecendo estas áreas de estudo. Enquanto obra de sociologia, O Processo Civilizacional, assume-se, nas palavras do próprio Elias, como fonte de algo novo: «Ao trabalhar neste livro, pareceu-me evidente que com ele se lançariam as bases para uma teoria sociológica, não dogmática e fundamentada empiricamente, dos processos sociais em geral e da evolução social em particular.» (vol. I, p. 14). É um trabalho de ruptura com os moldes em que se fazia a sociologia tradicional, ainda demasiado ligada ao positivismo, ao estruturalismo. A uma visão estática e individualista da sociedade que conduz a estudos de tempo curto e tendentes a generalizar as observações do comportamento humano respeitantes a uma época a todos os tempos, Elias opõe uma visão dinâmica que encara a sociedade não como um objecto imutável de estudo, mas sim como um processo sujeito a modificações contínuas de longo prazo. As novidades introduzidas no campo da Sociologia por esta obra situam-se, então, sobretudo a nível conceptual: são postos ao serviço do sociólogo novos instrumentos intelectuais de trabalho, como o conceito de “processo” (oposto ao de “estado”, teorizado por Talcott Parsons ao descriminar categorias básicas e rígidas da evolução social do indivíduo); são destruídas visões que consideram a mudança social um estado excepcional de transição entre dois estados imutáveis e que consideram o indivíduo como entidade distinta e separada da sociedade, recusando a interpenetração e a dinâmica de evolução contínua entre as várias camadas do conjunto sociológico; são inaugurados termos e expressões como “sociogénese”, “psicogénese”, “vida afectiva”, “modelação das pulsões”, “coacções exteriores/autocoacções”, “limiar de reactividade aversiva”, “força social” ou “mecanismo monopolista” (discriminadas por Elias – vol. I, pp. 54/55). A própria expressão “Processo de Civilização” ou “Processo Civilizacional” é nova e implica a compreensão e a assimilação desta contínua transformação social.

            No entanto, O Processo Civilizacional é uma obra que ultrapassa o campo da investigação sociológica, passando conscientemente para o campo da Psicologia (o sub-título da obra é precisamente Investigações Sociogenéticas e Psicogenéticas) e para o campo da História, fundindo de modo complexo e indestrinçável todas estas áreas, a fim de tentar esboçar uma Teoria da Civilização. A necessidade de um estudo mais alargado e conjugado entre os diversos ramos das ciências humanas acerca desta temática é, aliás uma das preocupações expressas pelo autor no Prefácio (vol. I, p. 54): «Serão necessárias a reflexão de muitas pessoas e a cooperação de diversos ramos científicos, que hoje estão muitas vezes separados por barreiras artificiais, para ir responder às questões que emergem ao longo deste estudo. São questões que dizem respeito à psicologia, à filologia, à etnologia e à antropologia, não menos do que à sociologia ou aos diferentes ramos especializados da investigação histórica.».

            Intimamente ligada à História, pelo modo como Elias lida com o tempo e com a evolução da sociedade e pelo investimento que faz na recolha de fontes escritas e pictóricas, esta obra interessa sobretudo à área de estudos da História Cultural e das Mentalidades não só pela demonstração da evolução dos sentimentos de pudor e de vergonha ao longo das épocas medieval e moderna, mas sobretudo pelo modo de relacionar e submeter a psicogénese dos comportamentos individuais à sociogénese colectiva da organização estatal. A data da sua primeira publicação, 1939, não foi propícia a uma rápida e imediata difusão e recepção da obra na comunidade dos investigadores europeus: quer por ter sido o ano de início da IIª Guerra Mundial, quer por Elias já se encontrar exilado na Grã-Bretanha, O Processo Civilizacional recebe pouca atenção, algo que já não acontece quando é novamente lançado em 1969 e traduzido, pela primeira vez, em francês, no ano de 1973, coincidindo com o período de renovação da historiografia francesa pela “Nouvelle Histoire”. A procura de uma crescente e frutífera interdisciplinariedade por parte da “Nouvelle Histoire”, não só com as outras ciências sociais, mas também com ciências naturais e quantitativas (veja-se o exemplo d’Os Camponeses do Languedoc, 1969, de Le Roy Ladurie), faz com que os historiadores europeus vejam agora a obra de Elias como um exemplo a seguir na fusão de campos de estudo e na inovação das temáticas. Tanto Lucien Fébvre (seu contemporâneo), como, mais tarde, Michel Foucault e Philippe Ariès, se dedicam a estudos sobre a valorização da racionalidade no Ocidente em detrimento do emocional e a modelação dos comportamentos colectivos e individuais pelas estruturas sociais, pelo Estado com ambições centralizadoras e monopolistas. Lucien Fébvre, co-fundador, em 1929, dos Annales d’Histoire Économique et Sociale e autor de duas das obras fundadoras da chamada “Histoire des Mentalités”: Martinho Lutero: Um Destino (1928) e Le Problème de l’Incroyance au XVIème Siècle (1942), vai chamar a atenção, tal como Elias, para a importância de uma História que acompanhe as flutuações da vida humana e que equacione a evolução indivídual com a necessidade social colectiva. Foucault publica por esta altura os seus importantes estudos acerca da repressão e controlo sociais exercidos sobre as expressões corporais e comportamentos dos indivíduos: o Surveiller et Punir (de 1975), a Folie et Déraison (História da Loucura) ou a História da Sexualidade são os exemplos mais significativos. Também Ariès trata já em 1960 o ambiente e limites mentais na família de Antigo Regime, bem como a “invenção da infância”, na sua obra L’Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime e vai interessar-se pela grande revelação da obra de Norbert Elias, que é o pequeno tratado de boas maneiras de Erasmo de Roterdão, A Civilidade Pueril. De facto, é Ariès o responsável pelo prefácio à edição francesa deste tratado em 1977, apenas quatro anos após a tradução francesa do Processo Civilizacional, o que dá uma ideia da sua repercussão na historiografia europeia pós-tradução francesa.

            O Processo Civilizacional é, actualmente, um trabalho datado em algumas das suas conclusões. Por isso, para se entender a sua dimensão total, não se pode ignorar ao longo da sua leitura a conjuntura mundial em que foi escrito: 1939 é um ano de culminar de tensões e de transformações numa Europa recém-entrada no século XX, recém-saída de uma Guerra inaudita à escala mundial e prestes a entrar em outro conflito de enormes dimensões, que iria mudar a face da organização política e das relações entre as grandes potências mundiais. Dadas as circunstâncias em que foi produzido, é um trabalho bastante acertado nas conclusões e previsões que faz em relação a esta mesma evolução da política mundial e da nova conjugação de forças. Quando, na “Conclusão” (Vol. II, pp. 254-265), Elias afirma que o processo civilizacional está no limiar da luta pela hegemonia mundial: «Está em pleno curso a luta pela hegemonia e, quer se tenha consciência disso quer não, pela formação de monopólios sobre territórios de uma ordem de grandeza ainda superior. E se, por agora, o que está em causa é a supremacia sobre continentes, já há, no entanto, correspondendo à integração de áreas cada vez mais vastas, sinais inequívocos de lutas pela supremacia num sistema de interdependências que abrange toda terra habitada.» (vol. II, p. 255), diz algo que se veio a verificar ao longo do século XX, tanto com as ambições do IIIº Reich sobre a Europa, como com a Guerra Fria, onde dois sistemas de organização económica (o capitalista e o comunista) disputaram, de facto, enormes zonas mundiais de ascendente económico e político.

            Apesar desta lucidez em relação à direcção tomada pelo processo civilizacional, a teoria global de civilização apresentada por Elias reveste-se de contornos algo deterministas e demasiado cingidos ao estudo das estruturas de poder secular, ainda que seja o próprio autor a desmentir tal hipótese, quando afirma ser o processo de civilização um produto totalmente humano e bastante irregular, tanto porque chega a identificar momentos de recuo da reactividade aversiva e da centralização estatal, como porque não o toma como universal. É, no entanto, verdade que Elias peca pela infalibilidade com que reveste as suas relações causa-efeito e, sobretudo, pela negligência a que vota o papel da Igreja e da religião no processo de pudicícia da sociedade, dando uma justa, mas exagerada centralidade à corte e antecipando demasiado a consolidação do Estado Moderno e da centralização dos poderes. O modo como relata a emergência e expansão do aparelho administrativo estatal deixa transparecer uma falsa facilidade na obtenção do controlo territorial e na eliminação dos privilégios por parte dos monarcas, quando este foi um processo moroso e nem sempre bem sucedido.

            A fusão de esquemas sociológicos de representação da realidade com a dinâmica histórica de que esta obra é o produto, origina uma teoria demasiado generalista não confirmada pelos historiadores, conscientes da imprevisibilidade e diversidade dos acontecimentos humanos, mas que, por todo o conteúdo já aqui aflorado, não retira valor e interesse a este clássico de Norbert Elias.

           

Ana Margarida Casimiro Rodrigues

source: http://www.fcsh.unl.pt/cpg/mhm/recens%C3%B5es_cr%C3%ADticas.htm